Escassas semanas depois de reeleito presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), Luciano Gonçalves, em entrevista a O Portomosense, lança um breve olhar ao primeiro mandato, perspetiva o segundo e fala de temas que lhe são caros como a erradicação da violência no futebol, a abertura da arbitragem à sociedade e os desafios que se levantam aos árbitros em tempos de forte exposição mediática.
O antigo presidente do Núcleo de Árbitros de Futebol de Porto de Mós, natural de Alcanadas (Batalha), mostra-se orgulhoso do seu percurso pessoal e desportivo e frisa que o futebol amador foi uma grande escola para agora enfrentar os desafios com que se depara na APAF.
Foi eleito para um segundo mandato à frente da APAF, naquela que foi a votação mais concorrida em 41 anos. Pode depreender-se que os árbitros portugueses, além de satisfeitos, depositam em si muitas expectativas?
Efetivamente, conseguimos ter um número de votantes recorde e o mérito é do trabalho realizado por uma equipa fantástica e não, apenas, pelo Luciano Gonçalves. Havendo só uma lista e com a pandemia à porta, os nossos árbitros facilmente arranjavam desculpa para não ir votar mas, pelo contrário, fizeram-no em massa e nós interpretamos isto como uma forma de nos darem mais responsabilidades, dizerem que estão connosco, mas, acima de tudo, que temos de fazer muito mais que aquilo que fizemos, e nós acreditamos que, de facto, é possível fazer mais. Esta eleição traz-nos muito mais responsabilidades.
O que destaca mais deste primeiro mandato?
A aproximação da associação às bases. Existia algum distanciamento junto dos árbitros das bases e o nosso trabalho mais visível foi esse: a associação não ser só dos árbitros de primeira categoria, mas também dos 4 200 árbitros que estão nos distritais e que são 98% dos árbitros em Portugal.
Quais são os seus principais objetivos para este segundo mandato?
Um é sermos reconhecidos como uma profissão. Não somos uma classe reconhecida e isso traz-nos imensos problemas tanto no recrutamento como na retenção de árbitros. Outro é dar continuidade ao projeto da Academia APAF, onde pretendemos ministrar formação em áreas que nada têm a ver com a arbitragem. Entendemos que um árbitro para conseguir chegar ao topo tem de estar bem preparado noutras áreas como, por exemplo, na gestão financeira, no inglês ou nas relações interpessoais.
Deduzo das suas palavras que, de uma forma ou de outra, a profissionalização é, então, para avançar…
Sim, devemos caminhar para a profissionalização, mas dividir a profissão de duas formas, o árbitro benévolo e o profissional. O benévolo que é aquele que anda nos distritais e que arbitra principalmente jogos das camadas jovens, recebendo cinco ou seis euros por jogo, em forma de compensação das despesas. Embora o árbitro dos distritais (tal como jogadores e treinadores) quase tenha de pagar para trabalhar, essa compensação deve ser devidamente declarada, e ninguém quer fugir a isso, mas falta criar o respetivo enquadramento jurídico.
Por sua vez, em Portugal não há arbitragem profissional na plenitude da palavra, temos semi-profissionais. Ora, se todos os outros agentes do futebol são profissionais, os árbitros também têm de ser. Um árbitro tem de se focar na sua atividade e não estar preocupado em ter que pedir ao patrão para ir arbitrar um jogo à segunda ou à quarta-feira. Temos de ver o futebol profissional como um todo.
Costuma dizer que quer gerir a APAF de dentro para fora e não o contrário. Tem-no conseguido?
Sim, sem dúvida. Esse tem sido o caminho e será sempre assim enquanto eu for presidente, é um dos princípios de que não irei de forma alguma abdicar. Quem gere a APAF são os seus dirigentes, através daquilo que são as indicações dos seus sócios, e não serão quaisquer outros intervenientes que irão mandar na associação de classe. Isso faz com que possamos ter um caminho mais duro, com mais pedras, mas é aquele que queremos. Seja bom ou mau, a responsabilidade é nossa.
Já foi jogador, treinador, dirigente desportivo e árbitro. Isso dá-lhe outro traquejo e outra sensibilidade nas funções que desempenha?
Sim, absolutamente. Orgulho-me muito desse percurso que fiz, desde ter começado muito cedo a jogar à bola no Alqueidão da Serra, a ser dirigente das Alcanadas, depois do Ferraria. Tudo aquilo que aprendi ao longo desse percurso estou a utilizá-lo no meu dia-a-dia enquanto dirigente da APAF. Qualquer dirigente que esteja num cargo desta dimensão devia obrigatoriamente passar pelas bases, como foi o caso do Núcleo de Árbitros de Porto de Mós, onde também aprendi muito, porque é aqui nas bases que tudo começa e nós, percebendo a dificuldade que é trabalhar para a comunidade pro bono, sabemos dar o valor e temos outra sensibilidade quando vamos para um cargo destes.
Além do orgulho no percurso feito, também nunca renega as suas origens…
Absolutamente. Sempre que falo nisso arrepio-me de alegria e satisfação. Tenho orgulho e digo sem qualquer problema que tive de ir trabalhar aos 14 anos e que terminei o 12.º à noite, ao mesmo tempo que trabalhava. É um orgulho para mim, dá-me satisfação, não tenho qualquer problema em dizer que trabalhei duas décadas nas obras públicas. Se foi de lá que consegui chegar onde cheguei, não tenho de estar a esconder isso, tenho é de ter orgulho. Além disso, devemos respeitar as nossas raízes para que possamos estar tranquilos connosco próprios. Se estivermos satisfeitos com aquilo que foi o nosso passado, independentemente de termos cometido erros ou não, isso dá-nos satisfação e liberta-nos e faz com que possamos estar sempre descomprometidos nos cargos, e isso dá-me uma tremenda satisfação.
Está bastante empenhado nas atuais funções mas afirma que, se for caso disso, não tem problemas em regressar à sua vida anterior. É uma pessoa desapegada do poder?
Sem dúvida, e isso dá-me à-vontade, uma forma de estar completamente descomprometida. É assim que o entendo e foi assim que abracei o projeto em 2016, com espírito de missão. Passado algum tempo tornei-me presidente a tempo inteiro mas só depois de assegurar que o facto de me tornar dirigente profissional não iria condicionar a minha liberdade de ação e de pensamento e foi isso que aconteceu. Por outro lado, quando entender que não sou uma mais-valia para a arbitragem e para o futebol, volto à minha vida normal e ao associativismo. Desse nunca me desligarei.
Uma das causas que abraçou enquanto presidente da APAF foi a erradicação da violência no desporto. Sente alguma evolução ou ainda há muito caminho a percorrer?
Há ainda um caminho muito longo para percorrer, mas temos de reconhecer que existem melhorias. Na última época, houve um decréscimo significativo de casos de violência e isso deve encher-nos de orgulho. No entanto, eu tenho o compromisso com os meus 4 500 árbitros de que enquanto existir um árbitro agredido de forma cobarde, podem contar comigo para o defender, tal como condeno da mesma forma e levanto processos a quem não se dá ao respeito ao nível comportamental, e a prova disso são os mais de 10 processos nos últimos quatro anos. Ora, se exijo aos meus árbitros um comportamento correto, faço o mesmo aos outros intervenientes. A violência tem de ser eliminada do futebol.
Todo o futebol está unido nessa luta ou há algum grupo menos empenhado?
O futebol amador não pode pagar pelos maus comportamentos e maus exemplos que existem no futebol profissional e é isso que tem acontecido. Não podemos esperar que no distrital existam comportamentos tranquilos e responsáveis quando na noite anterior assistimos a programas televisivos com pseudo-comentadores que fazem tudo menos comentar o futebol. Eu não quero nem espero que a arbitragem fique imune à crítica. Uma coisa é criticar o desempenho de um árbitro, e toda a gente tem direito à sua opinião, outra é ter 35 horas de programas televisivos com pseudo-comentadores a especular sobre a seriedade dos árbitros, mas também dos jogadores, treinadores e até dos próprios clubes. É inadmissível que a Entidade Reguladora da Comunicação Social não intervenha em certos programas que fomentam o ódio. Portanto, o grupo dos pseudo-comentadores é aquele que não nos está a deixar caminhar no sentido certo. Não são eles que diretamente estão a agredir os árbitros, mas são claramente quem está a incentivar que existam problemas nos distritais, porque para milhares de pessoas tudo aquilo que dizem é verdade e no dia a seguir quem vai sofrer é o árbitro, que é o elemento mais desprotegido no futebol. Se não se acredita no futebol profissional, não se acredita no amador, e é de facto aqui que está o nosso “calcanhar de Aquiles”.
Quer abrir a arbitragem e aproximá-la das pessoas. Como é que isso pode ser feito?
Um árbitro é uma pessoa como todas as outras, mas nem sempre é visto assim, e nós na arbitragem também temos culpa disso. Andámos demasiados anos, excessivamente corporativistas, sempre a olhar para nós e não pode ser assim, temos de nos aproximar da sociedade e dar a conhecer aquilo que somos enquanto pessoas e o que fazemos como árbitros. Muitos desconhecem, por exemplo, as várias iniciativas de solidariedade social em que nos envolvemos ou a forma como treinamos e tudo isso é importante. Abrir a arbitragem à sociedade é claramente um dos meus objetivos, se o conseguir, já me poderei dar por satisfeito pelo contributo prestado ao futebol.
Partindo de um meio pequeno e de um núcleo de árbitros também não muito grande, foi difícil chegar à presidência da APAF?
Seria hipócrita dizer que foi fácil. Não, foi um trabalho difícil, mas sempre com grandes pessoas ao lado e que me acompanharam imenso, desde o meu primeiro chefe de equipa e a pessoa que puxou para a arbitragem, Domingos Lavinha e Rodolfo Deillot, passando por outras referências de Porto de Mós, como o Carlos Amado e o Célio Ferreira, que me fizeram acreditar desde a primeira hora que era possível.
Eu acredito sempre muito na competência e no trabalho e a vida foi-me ensinando que juntando ambos é possível fazer acontecer. Por motivos de saúde, deixei de ser árbitro, mas continuei muito dedicado à arbitragem e penso que a minha dedicação ao Núcleo de Árbitros de Porto de Mós foi um grande passo para, em 2011, integrar a lista de Gustavo Sousa à APAF, e mais tarde a equipa de José Fontelas Gomes. Depois de lá estar, foi trabalhar da mesma forma, fazer aquilo que eu gosto de fazer, com muito trabalho, dedicação e humildade, sem “embandeirar em arco”, e as coisas foram acontecendo. Não escondo que sempre ambicionei chegar à presidência, mas nunca pensei que fosse tão cedo.
Um dos desafios mais recentes dos árbitros portugueses é o vídeo-árbitro. Como é que está a ser essa experiência?
Quando a Federação Portuguesa de Futebol teve a feliz ideia, e reafirmo, feliz ideia, de querer avançar com o vídeo-árbitro, eu disse publicamente que este sistema não vinha resolver os problemas do futebol e que tinha algumas dúvidas que nos primeiros anos fosse bem aceite. Porquê? Porque conheço a nossa realidade, a forma como vivemos o futebol e era previsível que aquilo que podia ser uma ferramenta de mais-valia se virasse novamente contra a arbitragem e, efetivamente, foi. Para termos uma noção, e basta fazermos este exercício, hoje em dia, fala-se tanto no vídeo-árbitro como se fala no árbitro que está em campo. Isto para dizer que, se até aqui tínhamos apenas o árbitro, agora duplicámos o número de pessoas que acabam por estar expostas. No entanto, eu acho que isto vai passar, que é uma questão de tempo e que, pouco a pouco, o vídeo-árbitro vai ser uma coisa normal. Tem sido assim ao longo do tempo na história do futebol, tudo aquilo que se foi acrescentando ao futebol, como o fora de jogo, e outras situações, com o passar do tempo, acaba por se diluir. Agora é óbvio que é difícil lidar com alguma crítica destrutiva.
Há três portomosenses nos órgãos da Federação Portuguesa de Futebol e temo-lo a si na APAF. É a justa recompensa pelo trabalho realizado?
Sem dúvida. Pela forma como se trabalhou e se trabalha, teria de haver frutos. O trabalho que o Júlio Vieira fez ao longo de anos na Associação de Futebol de Leiria, independentemente de concordarmos ou não, foi de excelência, e naturalmente fazia todo o sentido aproveitarmos aquele know-how dos dirigentes que temos e que verdadeiramente conhecem o futebol de base. O Carlos Amado, também pelos anos que esteve na arbitragem… Há, portanto, uma série de dirigentes que sempre trabalharam de forma desinteressada em prol do futebol e, por isso, é natural que quem o faz veja o seu trabalho reconhecido e lhe sejam dadas oportunidades. Por isso é que o Vítor Carvalho, do Alqueidão da Serra, é dos homens com mais anos na Federação Portuguesa de Futebol, que o Júlio Vieira volta para um segundo mandato, o Carlos Amado continua no Conselho de Arbitragem e eu renovo a eleição na APAF. Não são situações esporádicas, mas fruto de um trabalho consistente e sério.
jornal O PORTOMOSENSE